Topo

'Só héteros podem?': os padres que escondem a sexualidade dentro da Igreja

Imagem: Getty Images/iStockphoto

Simone Machado

Colaboração para o UOL

03/06/2025 05h30

A Igreja Católica proíbe em seu regulamento que homossexuais sejam lideranças religiosas, como padres ou bispos. Mesmo assim, há os que seguem suas vocações espirituais, incluindo a de manter o celibato, mas escondem essa parte de sua identidade. O UOL ouviu três destes padres.

Aos 41 anos, o padre Felipe*, que é se identifica como gay, mas é celibatário, afirma que a sexualidade e religiosidade sempre foram uma questão em sua vida.

"Estou prestes a completar 15 anos como padre e o tema da sexualidade sempre foi conflituoso. Fica a pergunta: quem pode ser padre, apenas heterossexuais? Não há essa questão, pois, a vocação não parte da sexualidade e sim da vida da pessoa", defende ele, apesar da proibição da Igreja a seminaristas e padres homossexuais.

Há repressão a padres gays, segundo Felipe: muitas vezes eles são alvo de vigilância interna, têm sua conduta observada com mais rigor ou até são trocados de paróquia. A homossexualidade, mesmo quando acompanhada do compromisso com o celibato, ou seja, com o compromisso de não se casar e nem ter relações amorosas, é vista pela igreja Católica como um desvio, algo que precisa ser "vigiado e controlado".

"Já fui transferido de paróquia quando descobriram que eu era gay. Mesmo me dedicando e tendo uma vida fiel a Deus, a minha sexualidade foi julgada", diz José Fernandes*, 53, que há duas décadas é padre e atua no interior de São Paulo.

"Mesmo eu sabendo que o bispo também é gay, ele não me aceitou na paróquia. É um paradoxo que muitas vezes nos faz questionar a doutrina. Mas acredito que tenho um propósito maior. A minha orientação sexual não muda em nada o meu trabalho e o meu compromisso com Deus e com a comunidade", opina o padre, que também diz manter o compromisso do celibato.

O medo de represálias foi o motivo pelo qual os entrevistados preferiram esconder sua sexualidade e viver no silêncio. É o caso do padre Samuel*, que há mais de duas décadas dedica sua vida à Igreja Católica, identifica-se como gay e mantém o celibato.

Segundo ele, o sistema homofóbico da Igreja Católica, que compreende a sexualidade apenas entre homem e mulher, faz também com que religiosos evitem trabalhar diretamente com a comunidade de fiéis LGBTQIA+.

"Muitos ainda enxergam essa comunidade como pecadora e quando você a a exercer um trabalho de acolhimento a eles, a situação com você muda. Te olham torto, dizem indiretas e param de te convidar para algumas atividades", diz Samuel.

O sacerdote acredita que o papa Francisco, que morreu em abril, teve falas acolhedoras e trouxe nova esperança ao dizer que não cabia à Igreja julgar a sexualidade das pessoas — ainda que as falas de Francisco não tenham mudado regras mais profundas destes temas na Igreja.

Alguns segmentos dentro da Igreja vêm lutando para que ela seja um local de acolhida e segurança ao público LGBTQIA+ e que acabe esse preconceito. Eu acredito em uma mudança e tenho a esperança de um cenário mais acolhedor.
Samuel, padre

A reportagem do UOL procurou a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e a Arquidiocese de São Paulo para comentar sobre a discriminação sofrida pelos padres que foram citados na reportagem, porém as entidades não se pronunciaram.

A CNBB pediu para que fossem procurados os bispos responsáveis por esses sacerdotes, o que não é possível, já que haveria possibilidade de eles serem identificados e sofrerem algum tipo de retaliação.

Questionada se é possível padres gays seguirem no sacerdócio, o que inclui o celibato, a Arquidiocese de São Paulo disse que "a Igreja Católica estabelece critérios bem definidos para a issão de candidatos ao sacerdócio. Entre os mais relevantes estão a maturidade afetiva, a disposição para uma autêntica vida de oração e a capacidade comprovada de viver o celibato apostólico com liberdade, fidelidade e equilíbrio, além da plena adesão aos ensinamentos da Igreja."

Interior da Igreja de São Francisco de Assis, em Salvador, em foto de arquivo Imagem: Reprodução/Prefeitura de Salvador

Igreja não aceita homossexuais

O documento de 2023 "Orientações e normas para os seminários", elaborado pela Conferência Episcopal Italiana sobre a ordenação de padres da Igreja Católica, diz que homossexuais não podem entrar nos seminários, independentemente do seu comportamento.

"Em relação às pessoas com tendências homossexuais que se aproximam dos seminários ou que descobrem tal situação no decurso da formação, em coerência com o próprio Magistério, a Igreja, embora respeitando profundamente as pessoas em questão, não pode itir ao seminário e às Ordens Sagradas aqueles que praticam a homossexualidade, apresentam tendências homossexuais profundamente radicadas ou apoiam a chamada cultura gay. Estas pessoas encontram-se, de fato, numa situação que constitui um grave obstáculo a um correto relacionamento com homens e mulheres', diz um trecho do documento.

Felipe* não concorda e acredita que essa é uma visão controversa da Igreja. "O que Deus nos pede é o celibato e castidade, e isso independe da sexualidade", diz.

Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo e psicanalista, Arthur Cavalcante reforça que o celibato é o ponto base para se tornar sacerdote. No entanto, o contexto cultural e patriarcal ainda é muito forte e presente na religião.

"No contexto cultural, ser homossexual é visto como algo fora da normalidade. A doutrina faz parte da história e possui muitas imposições que já foram alvo de movimentos, como a reforma protestante. Mas é preciso ter um olhar atento: o próprio papa Francisco tinha falas acolhedoras e nos dizia para não julgar", diz Cavalcante.

Sexualidade na Igreja Católica

Tiago Gurgel do Vale, padre e teólogo que coordena o curso de Teologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), explica que a sexualidade não é vista como um mal pela Igreja Católica, mas quando ela a a ser banalizada, ela a a perder o seu significado.

"O amor é o que caracteriza a sexualidade da pessoa como sendo humana. No contexto de uma civilização que apenas está preocupada no desfrutamento [sexual], onde a mulher pode tornar-se objeto sexual para o homem e o homem pode simplesmente se tornar um objeto sexual para as mulheres, a sexualidade a a perder o sentido", explica ele.

Na Igreja Católica, o sexo é consentido entre homens e mulheres dentro do casamento. Ainda segundo Vale, a igreja reconhece que a atração homossexual, ou seja, a orientação de uma pessoa que se sente atraída por outra pessoa do mesmo sexo, é uma inclinação natural e deve ser acolhida.

"O que a gente observa é que a Igreja condena qualquer forma de discriminação contra qualquer pessoa, e isso inclui as pessoas homossexuais. Seja em lei, em tratamento individual e para a comunidade eclesial, a igreja deve acolher e respeitar", afirma o teólogo.

*Nomes trocados a pedido dos entrevistados

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

'Só héteros podem?': os padres que escondem a sexualidade dentro da Igreja - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade


Cotidiano